Birra dos 2 anos: uma oportunidade de aprendizagem para pais e filhos

Uma mãe nos pergunta: “Gostaria de saber como intervir nas birras  e auxiliar a criança quando ela está com 2 anos de idade”.

Do ponto de vista psíquico, um bebê nasce fundido à sua mãe, como se ele e o ambiente fossem uma coisa só. Durante seu desenvolvimento, sua principal tarefa consiste em diferenciar-se deste ambiente (primeiramente a mãe; depois a família e seu meio social) para alcançar autonomia e independência.

Aos 2 anos, a criança, em geral, já se reconhece como um ser não mais fusionado e totalmente dependente de seu meio. Ela diz “eu” (ao invés de o nenê ou o João, para se referir a ela) e “é meu” (para defender o que deseja ou é sua propriedade). Em meio a esse reconhecimento de si mesma e do outro, a criança vai se posicionando no mundo, integrando suas experiências e construindo sua própria identidade. Consequentemente, ela se expressa de forma mais ativa para satisfazer-se e afirmar para si e para o mundo o que é importante para ela.

Nesse esforço de diferenciação e validação de seus próprios desejos e pensamentos, nem sempre a criança consegue comunicar com clareza o que ela está vivenciando. Ela chora, grita, faz escândalo, se joga no chão, esperneia, agride, entre outros comportamentos, como forma de explicitar o que quer, sente, pensa e vivencia com ela mesma e nas relações com as pessoas à sua volta.

Como as crianças aos 2 anos não conseguem transformar claramente em palavras o que querem, sentem, pensam e vivenciam (esse é um processo bastante complexo, que implica em articulações que vão além de um vasto vocabulário), as birras se tornam comum diante da dificuldade verbal e de compreensão do que está sendo solicitado, sentido, desejado e pensado. Muitas vezes, temos a sensação de que as birras surgem “do nada”, sem motivo aparente ou por um motivo que para muitos olhos não têm razão de existir. Outras vezes, elas são vistas como um querer fora de hora ou uma chatice desnecessária. Isso, porque elas podem decorrer de pensamentos e/ou sentimentos não verbalizados pela criança e/ou compreendidos, ou mesmo ouvidos, pelos adultos.

Com as birras, as crianças comunicam seu desconforto. Portanto, elas também são uma maneira encontrada pela criança de solicitar atenção e cuidado, de demonstrar que uma necessidade física não está sendo atendida (como sono, fome e dor), de expressar sentimentos como estresse (excesso de estímulo), tédio, angústia, insegurança, medo, entre outros.

As birras infantis, além de serem uma forma de comunicação, são um “teste de poder” por parte das crianças. Na medida em que seu “eu” vai se manifestando e as experimentações se ampliam, é natural que a criança experimente até onde ela e quem está ao seu redor pode ir. Ao mesmo tempo, crianças tentam compreender os limites (os delas e os que lhe são impostos) e, ainda, questionar aquilo que não vem delas. Com isso, um “não” diante de seus desejos, ou um pedido ou regra vinda de fora podem se tornar bem desagradáveis a elas. Vamos lembrar que nesta idade as crianças demonstram seus desejos na espera de conquistá-los, mas precisam aprender a lidar com a frustração quando o que almejam não é alcançado. Sendo assim, as birras são também uma oportunidade de ensinar a criança sobre os limites que a vida impõe.

Algumas crianças são mais insistentes e resistentes, fazendo birras constantes; outras manifestam tais comportamentos de forma mais amena. Por que será? O que as crianças querem nos dizer quando esperneiam, não escutam (ou fingem não ouvir) e batem de frente com o adulto?

Estas questões nos fazem pensar sobre as relações entre crianças e adultos, principalmente seus cuidadores. Relações mais permissivas, mais agressivas ou rígidas; relações sem afeto, sem limites claros e definidos (ou ambíguos); relações de manipulação, marcadas pela indisponibilidade de cuidado e atenção, ou ordens/regras rígidas e em excesso, são alvo de desentendimentos e birras infantis (e aqui incluo os adultos, que podem se comportar de maneira birrenta também). Crianças que não são atendidas em suas necessidades físicas e emocionais são mais propensas às birras.

Então fica a pergunta final: Será que algumas birras não são um pedido de ajuda da criança? Apesar de ser um momento que comumente nos afastamos dos pequenos, as birras são um convite ou uma convocação da criança para que os adultos possam ajudá-la a reconhecer e entender o que ela vivencia e experimenta em seu mundo complexo e com tantas descobertas. Crianças nesta idade precisam ser contidas pelo adulto, pois não conseguem ainda se acalmar sozinhas, principalmente quando estão diante de uma tempestade de emoções que ainda não entendem.

Cabe ao adulto tentar nomear o que se passa com a criança para que ela possa aprender a reconhecer o que sente, validar o que pensa, entender o que pode, e assim encontrar outras maneiras de se expressar.

A birra pode ser um momento de compreender o que a criança solicita e de ensiná-la sobre o que é possível ou não dentro do seu desejo. Que tal parar, ouvir e conversar para que estas birras não se estendam?!

Sobre Veronica Esteves de Carvalho
Psicóloga (CRP 06/50929-7) graduada pela PUC-SP e especializada em Logoterapia pela SOBRAL (Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial Frankliana). Tem 18 anos de experiência em psicoterapia para crianças, adultos e orientação a pais. Durante alguns anos foi responsável por projetos vinculados à educação e psicoprofilaxia. Criou, implantou e capacitou educadores nos projetos "A importância do brincar", "O Brinquedo na Educação Pré-escolar" e “Biblioteca Viva” em parceria com a Fundação Abrinq. Neste período ministrou palestras para pais e educadores. Participou da construção do grupo transdisciplinar para primagestas, pertencente à USP/SP. Em 2012, foi cativada a escrever sobre questões que apareciam no dia a dia de seu trabalho sobre parentalidade, criando junto com Patrícia L. Paione Grinfeld, o blog Ninguém cresce sozinho. Em 2015 tornou-se Coach pela Erickson College e passou a realizar Coaching de Vida para pais e educadores.

20 Responses to Birra dos 2 anos: uma oportunidade de aprendizagem para pais e filhos

  1. Josenaria says:

    Excelente,muito bom!!!

  2. Pingback: Birra dos 2 anos: uma oportunidade de aprendizagem para pais e filhos – Temos que falar sobre isso – TQFSI

  3. tatiana says:

    Eu adorei esse post, não consigo compreender pq em publico, com outras pessoas e na escola minha filha se comporta infinitamente melhor do que em casa? ela está numa fase muito complicada pra mim, não estou sabendo de verdade lidar com tanto choro, berros, jogadas no chão, tapas, e Não, muito não, não para tudo: não para escovar os dentes, não para tomar banho, não para colocar o uniforme, não para o casaco.
    ela é uma criança maravilhosa, tem 2 anos e 4 meses e faz uns 2 meses que está insuportável. Não sei mais o que fazer, já tentei ignorar, deixar de castigo, explicar. O problema é que qdo ela entra na crise, fica completamente fora de si, como se estivesse em surto mesmo, e não há possibilidade alguma de acalmá-la. De vez em qdo eu perco a paciência e acabo dando bronca gritando e é ai que to pecando, já não sei mais como agir! Ela fica na escola das 9 as 17:30 mas qdo estamos juntas sou super presente, sento no chão, brinco, dançamos, cantamos e de final de semana minha vida toda é voltada pra ela e para programas com ela e meu marido.
    O que será que estou fazendo de errado?

    • Veronica Esteves de Carvalho says:

      Tatiana, a grande questão é tentar entender o que sua filha está querendo lhe comunicar com essas birras todas. Olhe a relação de vocês duas e tente compreender o que sua filha esta solicitando através dos nãos e das birras feitas. Não pense que está fazendo algo errado porque isso pode limitar as possibilidades que surgem na relação de vocês. Muitas vezes, a questão é só vocês alinharem uma comunicação onde a birra não precise surgir como forma de expressão.

    • Joicy Pêgo says:

      Estou aqui me perguntando se não estava a descrever o meu filho. O que faremos?

      • Veronica Esteves de Carvalho says:

        Joicy, a comunicação nesse momento é fundamental: procurar entender o que a criança quer dizer (e não esta conseguindo através da fala/conversa) com tal comportamento de birra.

  4. gabigarcia2 says:

    Veronica, minha filha tem 2 anos e 1 mês. Sempre foi uma criança muito alegre e esperta. Desde 1 ano ela já entendia perfeitamente as nossas ordens e sempre se mostrou obediente. Há algumas semanas quando ela vem pedir algo (ela costuma conseguir expressar bem pedidos, de fome, sede, sono ou até cocô e xixi) ela acaba tentando falar uma frase completa e meio que empaca numa palavra. Por exemplo: “mamãe, eu quero quero quero…” Eu acabo rindo com a situação dela não conseguir falar e ficar repetindo a palavra, porém ultimamente ela começou a se irritar quando fica “travada” numa palavra e não consegue dar sequencia à frase. Eu parei de rir e incentivo ela a recomeçar a frase com calma mas ela já exita chorar e se aborrecer.
    1-Eu devo me preocupar se ela tem algum problema de dicção? Devo levá-la ao fonoaudiólogo? Ela sempre conseguiu se expressar bem e mesmo não sabendo falar as palavras ela se esforça.
    2-Como devo agir quando ela se irrita por não conseguir terminar a frase? Devo ajudá-la? Não tenho idéia mesmo de como poder ajudar.
    Obrigada!

    • Veronica Esteves de Carvalho says:

      Gabi, para a criança expressar sensações físicas é mais fácil do que expressar emoções e desejos ainda mais nesta idade em que sua filha se encontra. Pelo que percebo, a princípio, não é questão de dicção e sim de nomear e significar aquilo que quer e deseja. Trabalhe com ela as emoções, vá dando nome ao que vc sente e mostre a ela e explique o que é cada uma destas emoções: alegria, tristeza, vontade, desejo, angustia, enfim… Quando ela se irritar diga que a emoção irritação está impedindo ela de dizer o que quer; deixe-a se acalmar, dê o tempo necessário a ela para se tranquilizar (sem pressão) e deixe-a dizer com as palavras dela o que esta pensando. Aos poucos voc~e vai nomeando o que ela diz e ela vai registrando e associando as expressões verbais com as sentidas por ela. As emoções realmente interferem muito na comunicação.

    • tami says:

      Nossa com o meu filho está acontecendo a mesma coisa. Ele tem 2 anos é 7 meses, sempre conseguiu se expressar bem mas agora tem impactado quando vai falar algumas coisas, como se estivesse gago

      • Veronica Esteves de Carvalho says:

        Tamires, estar atento a criança e buscar entender o que ela quer nos dizer, permitindo que expresse (não só verbalmente) seus sentimentos e pensamentos é muito valioso.

  5. Pingback: Os artigos mais lidos em 2014 no NCS | Ninguém cresce sozinho

  6. Meu filho tem 2 anos e 2 meses e às vezes penso que vou enlouquecer de tanta birra que ele faz, e agora ele me agride, belisca, morde, bate. Não consigo mais ir em locais como igreja, restaurante, mercados pois ele começa as birras, geralmente quando nego algo a ele, como por exemplo mexer em algo que nao pode, ele chora muito, grita e eu tento manter a paciência mas por dentro isso me corrói. O Pedro é muito esperto, ativo e fala muito bem ele é o meu terceiro filho, tenho outro menino de 6 e uma menina de 4.

    • Veronica Esteves de Carvalho says:

      Celina, vale tentar identificar o que seu filho está querendo dizer com estes comportamentos birrentos: chamar atenção, dizer algo que não consegue ainda verbalizar, dificuldade de entender e aceitar os “não” impostos a ele, disputa com os irmãos, enfim … O que tem por detrás deste comportamento? De maneira particular e dentro das relações,principalmente familiares, as crianças demonstram através das birras algo que ainda não possuem a maturidade para absorver ou compreender, inclusive sobre sentimentos vivenciados. De qualquer forma, é preciso ir conversando com ele – fora dos momentos de birras/stress – sobre estas experiências desconfortáveis tanto para você quanto para ele. Mostrar a ele que existem outras formas de comunicar-se com as pessoas e o mundo e conquistar ou negociar seus desejos.

  7. Foi de fácil compreensão a explicação. Como educadora gostaria de saber qual a melhor atitude diante do retorno a birras em alguns momento na sala de um aluno entre os dezoitos, depois que uma aluna nova começou e sendo a mesma bebezinha para a turma, pois precisa de ajuda especifica para tomar as alimentações líquidas e ser dado na boca a comida ela tem .
    um ano e sete meses e o demais mais de dois anos

    • Veronica Esteves de Carvalho says:

      Mercia,

      Não entendi se as birras vem da aluna mais nova ou dos demais alunos. Mas de qualquer forma, podemos pensar na seguinte questão: O que este movimento das crianças nos comunica? São comportamentos de reivindicação, atenção, ciumes, enfim, o que elas estão querendo te mostrar? Em situações novas ou de mudança (a entrada de uma nova aluna) é preciso comunicar as crianças o que esta acontecendo e contê-las. Neste caso que cita, me parece que as crianças estão questionando e tentando entender o comportamento diferenciado dado a esta aluna nova (ela não bebe e não come sozinha como os demais).Será que foi dito para toda a classe que ela precisa de ajuda? E, ao dizer isso, os outros alunos se sentiram “sem ajuda”, deixados de lado? Acho que valeria um bom bate papo com eles (dentro de uma linguagem para crianças de 2 anos). Situações como esta e outras mais dentro de uma sala de aula ou grupo de crianças traz a tona questões específicas que precisam ser pensadas dentro da dinâmica individual e de cada grupo em particular.

  8. Juliana Thomé says:

    Gostei! vou tentar aplicar no dia-a-dia. Obrigada!

    • Veronica Esteves de Carvalho says:

      Juliana, espero que ajude! Se quiser nos conte depois sua experiência. Ela pode ser valiosa para muitos pais e educadores.

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